terça-feira, 24 de abril de 2018

1871 (da indignação) - A sala de espetáculos


A sala de espectáculos não fica em nossa casa

CRÓNICA 1 de Abril de 2018, por 

Quando os vejo entrar na sala com baldes de duas toneladas de pipocas, lembro-me sempre dos pais de Chihiro que comem, comem, comem até se transformarem em porcos gigantes


Desde que as pipocas entraram nas salas de cinema que evitamos essas mesmas salas, mas nem sempre é fácil fazê-lo. Nem todas as salas sem pipocas são confortáveis ou passam os filmes que queremos ver e, lá vamos nós, ao cinema das pipocas.


Quando os vejo entrar na sala com baldes de duas toneladas de pipocas, numa mão, e dez litros de refrigerante, na outra, lembro-me sempre dos pais de Chihiro quando se sentam ao balcão do restaurante e comem, comem, comem até se transformarem em porcos gigantes. Confesso que desejo que o mesmo aconteça a todos os que, no momento de maior suspense do filme, escarafuncham o fundo do balde à procura das últimas pipocas e as enfiam todas na boca, mastigando-as furiosamente. Imagino os créditos a passar, as luzes a acenderem-se suavemente e ver a sala cheia de suínos, confusos, sem saberem onde estão, à procura da pocilga.
As pipocas já fazem parte do espectáculo, mas há outras tendências que me espantam, por exemplo, comentar o filme alto, informando todo o auditório do que se passará a seguir, trautear a música ao mesmo tempo que passa no ecrã, rir desbragadamente com comentários despropositados à mistura. Não, não fui ver um filme para adolescentes com adolescentes. No final, quando as luzes se acendem procuro a personagem que partilhava as suas palavras e emoções com todos nós, era um professor do secundário da escola ali no bairro, identifiquei. A indisciplina na sala de aula fá-lo comportar-se como os garotos, conjecturo.
Comentários durante um concerto de Bach também me espantam, sobretudo durante os solos, quando o sofrimento está no auge. “Cristo está a morrer e vocês a pôr a conversa em dia, o que se passa convosco?”, apetece-me gritar enquanto me imagino a virar-me para trás para repreender os dois amigos que não se coíbem de dar puns, sim, puns, cujo cheiro chega aos lugares da frente.
“Estamos na Gulbenkian!”, continuaria a gritar, virando-me agora para a senhora ao meu lado, com a sua mala e sapatos de alta-costura e que, quando se aborrece com a Paixão segundo S. Mateus liga o telemóvel e lê. “Pode baixar a intensidade da luz”, ouço-me a murmurar, num momento em que o coro canta mais alto, como se o comportamento fosse perfeitamente normal numa sala de concertos, como se não me estivesse realmente a incomodar, tal como me incomoda a menina que tosse ininterruptamente e a mãe considera que não tem de sair da sala porque a filha está, de certeza, a fazer de propósito. E todos nós, incluindo a orquestra e o coro, têm de levar com a lição que a mãe entende ser aquela a melhor altura para dar.

A senhora do telemóvel fecha-o, começa a agitar-se na cadeira, também está incomodada. Do outro lado do corredor ouvem-se suspiros – não é pelo Senhor que ouve insultos dos que não acreditam que é Filho de Deus, mas por toda aquela situação. Baixo-me e tento abrir a mala sem fazer barulho para procurar uma caneta e, na parte detrás do aviso que o maestro adoeceu e foi substituído, escrever: “Não é melhor sair?” Mas, entretanto, a mãe agarra na miúda de seis ou sete anos, que assim que atravessa a porta, miraculosamente, deixa de tossir. Para trás ficaram os dois irmãos mais velhos que dormem o sono dos justos enquanto Pedro nega Jesus três vezes. “Bem cara fica a sesta”, um adulto e três crianças perfazem 75 euros. “Isto não é o Quebra-Nozes, é Bach e o Senhor morre pelos nossos pecados... em alemão! A esta hora os meninos já deviam estar de dentes lavados e prontos para ir para a cama”, imagino-me a dizer, num tom catequético àquela mãe.
A democracia chegou e bem, com ela a escolarização e o acesso à cultura, melhor ainda, mas a educação não sei bem onde ficou porque, agora que escrevo, lembro-me que a última vez que fui ao Teatro D. Maria II também havia ecrãs de telemóveis a brilhar no escuro e um dos aparelhos chegou a tocar, era o da mãe de umas actrizes que estava em palco. Sei-o porque a senhora o disse várias vezes, orgulhosa, antes de entrar e ocupar o lugar central da primeira fila da sala Estúdio.
Vamos ao cinema, ao teatro, à ópera e é como se não tivéssemos saído da sala de nossa casa, só falta pôr as pantufas e vestir o robe porque a comida e a bebida, os comentários, o telefone, a tosse e até o alívio dos intestinos já lá estão, lá, onde não deviam ter entrado.

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