sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

1895 (do regresso à infância) - Quero só isso nem isso quero

QUERO SÓ ISSO NEM ISSO QUERO


Quero uma mesa e pão sobre essa mesa
na toalha de linho nódoas de vinho
quero só isso nem isso quero

Quero a casa de terra à minha volta
cães altos na noite a minha mãe mais nova
quero só isso nem isso quero

Quero a casa do forno onde eu me escondia dos relâmpagos
e trovões quando um ferro no cesto garantia uma feliz cria à galinha chocadeira
quero só isso nem isso quero

Quero de novo fundir ao lume os soldados de chumbo que no natal me punham no sapatinho
e tirar chouriço e toucinho do guarda-comidas
quero só isso nem isso quero

Quero fazer pequeninos adobes e construir casas pelo quintal
ver chegar o verão e comermos todos lá fora na varanda de tijolo
quero só isso nem isso quero

Quero uma aldeia umas pedras um rio
umas quantas mulheres de joelhos brancos esfregando a roupa nas pedras
quero só isso nem isso quero

Quero escrever fatais cartas de amor à rapariga dos meus oito anos
rasgar essas cartas deixá-las pra sempre dentro do tronco oco da oliveira
quero só isso nem isso quero

Quero umas cabras um pastor rico um pastor pobre
o leite quente na teta o cabrito morto soprado e esfolado
quero só isso nem isso quero

Quero a courela as perdizes no ovo a baba do cuco
laranjas de orvalho no ano novo colhidas na árvore
quero só isso nem isso quero

Quero dois montes e um paul de malmequeres a cheia na primavera
a asma o ruído dos ralos as pernas sombrias das raparigas
quero só isso nem isso quero

Quero os espargos os pinheiros bravos o primeiro pôr-do-sol
as noites de baile no carnaval as bandeiras da safra
quero só isso nem isso quero

Quero que voltem os que morreram os que emigraram
matar com eles o bicho com aguardente pela manhã antes da pega
quero só isso nem isso quero

Quero ver ao vento o véu das noivas apanhar os confeitos nos casamentos
saber pelos papéis dos registos o tempo da prenhez palavra misteriosa
quero só isso nem isso quero

Quero um páteo meu e da sombra e galinhas pedreses e árvores
uma mina de avencas uma horta uma sebe de cana umas casas caídas
quero só isso nem isso quero

Quero uma enxada uma gadanha calos nas mãos cuspo nos calos
a cava mais funda da vinha o capataz a fazer o vinho correr
quero só isso nem isso quero

Quero ajudar na rega do fim da tarde calcar os buracos das toupeiras
e dirigir com o sacho a água morna nos pés até aos regos do feijão
quero só isso nem isso quero

Quero em dezembro o varejo final da azeitona o búzio a tocar
a azeitona a cair dos ramos nos panos de serapilheira
quero só isso nem isso quero

Quero o meu pai de chapéu de chuva aberto nos dias de sol
o meu pai de manhãzinha a lavar-se e a explicar-nos latim e história
quero só isso nem isso quero

Quero nu em pelota entre todos tomar os banhos no marachão
os ninhos dos pássaros as andorinhas de asas escuras no céu azul
quero só isso nem isso quero

Quero o pátio da escola a roda das raparigas a cantar à volta do plátano
o primeiro sonho de amor as primeiras palavras gaguejadas trocadas com uma rapariga
quero só isso nem isso quero 

Quero as feridas nos pés para poder sair à rua descalço
o pão com conduto entre os meninos pobres no recreio
quero só isso nem isso quero

Quero ir ao vale barco a malaquejo à marmeleira
roubar melões jogar ao murro ver nas festas o fogo preso
quero só isso nem isso quero

Que quero tanto que quero um mundo ou nem tanto só agora reparo
quero morder para sempre a almofada quente e densa da terra
quero só isso nem isso quero


Ruy Belo, de Toda a Terra (1976), 

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

1894 (Contra a acomodação) - Morte ao meio-dia / Ruy Belo



Morte ao Meio-Dia


No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

Que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer

Ruy Belo
in *Boca Bilingue(1966)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

1893 (da consciência de si) - António: ou esse gajo e eu

António: ou esse gajo e eu

Para que estou eu aqui a faalr sobre este gajo
que ninguém sabe quem foi
perdeu uma batalha em Alcântara
(embora eu que estive lá ache que não)
Um gajo que já vinha de Alcácer Quibir
filho de filho de rei e de uma judia
um gajo que o pvo queria e que por isso
ninguém denunciou durante os meses
em que andou escondido de casa em casa
um gajo que partou para o exílio
rei e não rei
levando anéis para comprar apoios
até ficar só com os dedos.
Um gajo que foi símbolo de um país que já não era
tão azarado que depois de tanto esforço
ao chegar a Peniche em uma armada
viu Drake piratear os portugueses
a peste matar um terço dos soldads
e depois ao seguir para Lisboa
não teve povo levantado
teve sorrisos acenos caras fechadas.
O povo já não é o mesmo
disse alguém.
Era e não era. Queria e não queria
um dia pronto a morrer no outro nem por isso.
Um gajo que mesmo assim não desistiu
nem deixou de ser o rei que só não tinha
Estado
e se calhar ainda bem
assim ao menos pode ser poema.
Porque estou a falar de tudo isto?
Talvez sem querer esteja a falar de mim
e dos que sonharam como Sena
outro país
exilados de fora
exilados de dentro
a si mesmo se pondo em causa
porque só desse modo pode amar-se a pátria
como a si mesmo talvez se interrogasse o gajo
que só a sós consigo foi António Rei
quase poder quase tudo quase ninguém
como o país que dentro dele se perdeu .
Escrebo porque esse gajo
também sou eu.

Manuel Alegre

domingo, 9 de dezembro de 2018

1892 (Da justiça) - Fala de Alcântara e depois

Fala de Alcântara e depois



Era um resto de cavalaria
quantos ao certo não sei
o que sobrou de Alcácer-Quibir
um resto
por seu reino e por seu rei.

Dois flancos dois frágeis terríveis flancos.
À primeira investida
levaram de vencida os invasores
era um resto de cavalaria
e povo mal armado.
Então o Duque de Alba carregou
trazia o exército mais forte da Europa
contra o que de nós ainda restava
cavaleiros sem cavalo
lavradores taberneiros sapateiros
fanqueiros mendigos chulos
putas
facas ancinhos foices pedras mãos
palavras palavrões
a língua portuguesa
o corpo e a alma
Alcântara e depois
Lisboa bairro a bairro rua a rua
por seu reino e por seu rei
quantos ao certo não sei
defendiam uma bandeira rota
além da morte além do fim.

Quando é assim
não há derrota

Manuel Alegre, em "Auto de António"

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

1891 (das palavras) - A festa do silêncio

A Festa do Silêncio
Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.
Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.
Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.
António Ramos Rosa, in "Volante Verde"

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

1889 (do amor) - O teu riso

O Teu Riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.


Pablo Neruda 

domingo, 11 de novembro de 2018

1888 (Do espanto de viver) - Carpe Diem

Carpe Diem
Aproveita o dia,
Não deixes que termine sem teres crescido um pouco.
Sem teres sido feliz, sem teres alimentado teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue o direito de expressar-te, que é quase um dever.
Não abandones tua ânsia de fazer de tua vida algo extraordinário.
Não deixes de crer que as palavras e as poesias sim podem mudar o mundo.
Porque passe o que passar, nossa essência continuará intacta.
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Nos derruba, nos lastima, nos ensina, nos converte em protagonistas de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua, tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar, porque só nos sonhos pode ser livre o homem.
Não caias no pior dos erros: o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso. Não te resignes, e nem fujas.
Valorize a beleza das coisas simples, se pode fazer poesia bela, sobre as pequenas coisas.
Não atraiçoes tuas crenças.
Todos necessitamos de aceitação, mas não podemos remar contra nós mesmos.
Isso transforma a vida em um inferno.
Desfruta o pânico que provoca ter a vida toda a diante.
Procures vivê-la intensamente sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro, e encara a tarefa com orgulho e sem medo.
Aprendes com quem pode ensinar-te as experiências daqueles que nos precederam.
Não permitas que a vida se passe sem teres vivido…

Walter Whitman (1819 – 1892)

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

1887 (das palavras) - As Palavras de Amor

As Palavras de Amor

Esqueçamos as palavras, as palavras: 
As ternas, caprichosas, violentas, 
As suaves de mel, as obscenas, 
As de febre, as famintas e sedentas. 

Deixemos que o silêncio dê sentido 
Ao pulsar do meu sangue no teu ventre: 
Que palavra ou discurso poderia 
Dizer amar na língua da semente? 

José Saramago, in "Finalmente Alegria" 

terça-feira, 6 de novembro de 2018

1886 (das palavras) - Segunda nota explicativa

Segunda Nota Explicativa


Se uma palavra toca noutra ou mesmo sem tocar 
lhe queda próxima, põem-se as duas 
a dedilhar lembranças na ária 
da carne azada. 

Passa-se isto 
na poesia dos poetas e na linguagem 
da rua. Os ganhos 
são mútuos e ficam mal lembrados 

ou julgados inconvenientes se 
pouco prosados ultrapassam 
a discreta função de fundo 
musical na paisagem ambiente. 

Ganham em sentidos o que perdem 
em concisão. Para que servem os muros 
que nos cercam senão para dar ganas 
de os saldar? 

Júlio Pomar, in "TRATAdoDITOeFEITO" 

sábado, 3 de novembro de 2018

1885 (das palavras) - A palavra

A PALAVRA


A palavra renova-se no poema.
Ganha cor,
ganha corpo,
ganha mensagem.

A palavra no poema não é estática,
pois, inteira e nua se assume
no perfeito,
no perpétuo movimento
da incógnita que a adoça.

A palavra madura é espectáculo.
Canta.
Vive.
E respira. Para tudo isso
basta
uma mão inteligente que a trabalhe,
lhe dê a dimensão do necessário
e do sentido
e lhe amaine sobre o dorso
o animal que nela dorme destemido.

A palavra é ave
migratória,
é cabo de enxada,
é fuzil, é torno de operário,
a palavra é ferida que sangra,
é navalha que mata,
é sonho que se dissipa,
visão de vidente.

A palavra é assim tantas vezes
dia claro
sinal de paisagem
e por isso é que à palavra se dá,
inteiramente,
um bom poeta
com os seus sonhos,
com os seus fantasmas,
com os seus medos 
e as suas coragens,
porque é na palavra que muitas vezes está,
perdido ou escondido,
o outro homem que no poeta reside.

Eduardo White

[314]

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

1884 (das palavras) - Há palavras que nos beijam



Há Palavras que Nos Beijam

Há palavras que nos beijam 
Como se tivessem boca. 
Palavras de amor, de esperança, 
De imenso amor, de esperança louca. 

Palavras nuas que beijas 
Quando a noite perde o rosto; 
Palavras que se recusam 
Aos muros do teu desgosto. 

De repente coloridas 
Entre palavras sem cor, 
Esperadas inesperadas 
Como a poesia ou o amor. 

(O nome de quem se ama 
Letra a letra revelado 
No mármore distraído 
No papel abandonado) 

Palavras que nos transportam 
Aonde a noite é mais forte, 
Ao silêncio dos amantes 
Abraçados contra a morte. 

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca' 

terça-feira, 23 de outubro de 2018

1881 (Do espanto de viver) Gato que brincas na rua

Gato que brincas na rua

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Fernando Pessoa 
1-1931

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

1880 (da espuma dos dias) - A história da moral

A HISTÓRIA DA MORAL


Você tem-me cavalgado
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.
ALEXANDRE O'NEILL
Alexandre O'Neill
Nasceu a 19 Dezembro 1924
(Lisboa)
Morreu em 21 Agosto 1986
(Lisboa)

domingo, 14 de outubro de 2018

1879 (da poesia) - Eu sou desta língua

"O sentido do poema é o próprio poema. Mas ninguém está de fora da história. Muitas vezes me perguntam porque é que , sendo poeta, eu me envolvi na política. E eu respondo: por isso mesmo."

Manuel Alegre 2018

sábado, 13 de outubro de 2018

1878 (do espanto de viver) - Pido silencio

Pido Silencio
Pablo Neruda

Ahora me dejen tranquilo.
Ahora se acostumbren sin mí.

Yo voy a cerrar los ojos
Yo sólo quiero cinco cosas,
cinco raices preferidas.

Una es el amor sin fin.
Lo segundo és ver el otoño.
No puedo ser sim que las hojas
vuelen y vuelvan a la tierra.

Lo tercero es el grave invierno,
La lluvia que amé, la caricia
del fuego em el frio silvestre.

Em cuarto lugar el verano
redondo como una sandía.


La quinta cosa son tus ojos,
Matilde mia, bienamada,
no quiero dormir sin tus ojos,
no quiero ser sin que me mires:
yo cambio la primavera
por que tú me sigas mirando.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

1877 (Do espanto de viver) - Desfado

Desfado

Quer o destino que eu não creia no destino
E o meu fado é nem ter fado nenhum
Cantá-lo bem sem sequer o ter sentido
Senti-lo como ninguém, mas não ter sentido algum

Ai que tristeza, esta minha alegria
Ai que alegria, esta tão grande tristeza
Esperar que um dia eu não espere mais um dia
Por aquele que nunca vem e que aqui esteve presente

Ai que saudade
Que eu tenho de ter saudade
Saudades de ter alguém
Que aqui está e não existe
Sentir-me triste
Só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem
Só por eu andar tão triste

Ai se eu pudesse não cantar "ai se eu pudesse"
E lamentasse não ter mais nenhum lamento
Talvez ouvisse no silêncio que fizesse
Uma voz que fosse minha cantar alguém cá dentro

Ai que desgraça esta sorte que me assiste
Ai mas que sorte eu viver tão desgraçada
Na incerteza que nada mais certo existe
Além da grande certeza de não estar certa de nada.

Pedro da Silva Martins

quinta-feira, 19 de julho de 2018

1876 (do prazer de viver) - É de manhã

É de Manhã
Caetano Veloso



É de manhã
É de madrugada
É de manhã
Não sei mais de nada
É de manhã
Vou ver meu amor

É de manhã
Vou ver minha amada
É de manhã
Flor da madrugada
É de manhã
Vou ver minha flor

Vou pela estrada
E cada estrela
É uma flor
Mas a flor amada
É mais que a madrugada
E foi por ela
Que o galo cocorocô
Que o galo cocorocõ

quarta-feira, 18 de julho de 2018

1875 (da condição humana) - Arte poética

« A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.

A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou praguejando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
— e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.

A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã. »


in Mário Dionísio, Poesia Completa
colação PLURAL, Imprensa Nacional-Casa da Moeda 

quinta-feira, 21 de junho de 2018

1874 (da condição humana) - Cais

Para quem quer se soltar
Invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor
E sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir
Eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar
Compositores: Milton Nascimento / Ronaldo Bastos

terça-feira, 24 de abril de 2018

1871 (da indignação) - A sala de espetáculos


A sala de espectáculos não fica em nossa casa

CRÓNICA 1 de Abril de 2018, por 

Quando os vejo entrar na sala com baldes de duas toneladas de pipocas, lembro-me sempre dos pais de Chihiro que comem, comem, comem até se transformarem em porcos gigantes


Desde que as pipocas entraram nas salas de cinema que evitamos essas mesmas salas, mas nem sempre é fácil fazê-lo. Nem todas as salas sem pipocas são confortáveis ou passam os filmes que queremos ver e, lá vamos nós, ao cinema das pipocas.


Quando os vejo entrar na sala com baldes de duas toneladas de pipocas, numa mão, e dez litros de refrigerante, na outra, lembro-me sempre dos pais de Chihiro quando se sentam ao balcão do restaurante e comem, comem, comem até se transformarem em porcos gigantes. Confesso que desejo que o mesmo aconteça a todos os que, no momento de maior suspense do filme, escarafuncham o fundo do balde à procura das últimas pipocas e as enfiam todas na boca, mastigando-as furiosamente. Imagino os créditos a passar, as luzes a acenderem-se suavemente e ver a sala cheia de suínos, confusos, sem saberem onde estão, à procura da pocilga.
As pipocas já fazem parte do espectáculo, mas há outras tendências que me espantam, por exemplo, comentar o filme alto, informando todo o auditório do que se passará a seguir, trautear a música ao mesmo tempo que passa no ecrã, rir desbragadamente com comentários despropositados à mistura. Não, não fui ver um filme para adolescentes com adolescentes. No final, quando as luzes se acendem procuro a personagem que partilhava as suas palavras e emoções com todos nós, era um professor do secundário da escola ali no bairro, identifiquei. A indisciplina na sala de aula fá-lo comportar-se como os garotos, conjecturo.
Comentários durante um concerto de Bach também me espantam, sobretudo durante os solos, quando o sofrimento está no auge. “Cristo está a morrer e vocês a pôr a conversa em dia, o que se passa convosco?”, apetece-me gritar enquanto me imagino a virar-me para trás para repreender os dois amigos que não se coíbem de dar puns, sim, puns, cujo cheiro chega aos lugares da frente.
“Estamos na Gulbenkian!”, continuaria a gritar, virando-me agora para a senhora ao meu lado, com a sua mala e sapatos de alta-costura e que, quando se aborrece com a Paixão segundo S. Mateus liga o telemóvel e lê. “Pode baixar a intensidade da luz”, ouço-me a murmurar, num momento em que o coro canta mais alto, como se o comportamento fosse perfeitamente normal numa sala de concertos, como se não me estivesse realmente a incomodar, tal como me incomoda a menina que tosse ininterruptamente e a mãe considera que não tem de sair da sala porque a filha está, de certeza, a fazer de propósito. E todos nós, incluindo a orquestra e o coro, têm de levar com a lição que a mãe entende ser aquela a melhor altura para dar.

A senhora do telemóvel fecha-o, começa a agitar-se na cadeira, também está incomodada. Do outro lado do corredor ouvem-se suspiros – não é pelo Senhor que ouve insultos dos que não acreditam que é Filho de Deus, mas por toda aquela situação. Baixo-me e tento abrir a mala sem fazer barulho para procurar uma caneta e, na parte detrás do aviso que o maestro adoeceu e foi substituído, escrever: “Não é melhor sair?” Mas, entretanto, a mãe agarra na miúda de seis ou sete anos, que assim que atravessa a porta, miraculosamente, deixa de tossir. Para trás ficaram os dois irmãos mais velhos que dormem o sono dos justos enquanto Pedro nega Jesus três vezes. “Bem cara fica a sesta”, um adulto e três crianças perfazem 75 euros. “Isto não é o Quebra-Nozes, é Bach e o Senhor morre pelos nossos pecados... em alemão! A esta hora os meninos já deviam estar de dentes lavados e prontos para ir para a cama”, imagino-me a dizer, num tom catequético àquela mãe.
A democracia chegou e bem, com ela a escolarização e o acesso à cultura, melhor ainda, mas a educação não sei bem onde ficou porque, agora que escrevo, lembro-me que a última vez que fui ao Teatro D. Maria II também havia ecrãs de telemóveis a brilhar no escuro e um dos aparelhos chegou a tocar, era o da mãe de umas actrizes que estava em palco. Sei-o porque a senhora o disse várias vezes, orgulhosa, antes de entrar e ocupar o lugar central da primeira fila da sala Estúdio.
Vamos ao cinema, ao teatro, à ópera e é como se não tivéssemos saído da sala de nossa casa, só falta pôr as pantufas e vestir o robe porque a comida e a bebida, os comentários, o telefone, a tosse e até o alívio dos intestinos já lá estão, lá, onde não deviam ter entrado.

segunda-feira, 26 de março de 2018

1870 (do amor) . Intercidades

INTERCIDADES
 
galopamos pelas costas dos montes no interior
da terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno
a cuspir o vento a cuspir o tempo a cuspir
o tempo
o tempo que os comboios do sentido contrário engolem
do sentido contrário roubam-nos o tempo meu amor
 
preciso de ti que vens voando
até mim
mas voas à vela sobre o mar
e tens espaço asas por isso vogas à deriva enquanto eu
vou rastejando ao teu encontro sobre os carris faiscando
ocasionalmente e escrevo para ti meu amor
a enganar a tua ausência a claustrofobia de cortinas
cor de mostarda tu caminhas sobre a água e agora
eu sei
as palavras valem menos do que os barcos
 
preciso de ti meu amor nesta solidão neste desamparo
de cortinas espessas que impedem o sol que me impedem
de voar e ainda assim do outro lado
o céu exibe nuvens pequeninas carneirinhos a trotar
a trotar sobre searas de aveia e trigais aqui não há
comemos eucaliptos eucaliptos e igrejas caiadas
debruçadas sobre os apeadeiros igrejas caiadas
meu amor
eu fumo um cigarro entre duas paragens leio
o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes as 
pessoas são tão tristes as pessoas são patéticas meu
amor ainda bem que tu me escondes do mundo me escondes
dos sorrisos condescendentes do mundo da comiseração
do mundo
à noite no teu corpo meu amor eu
também sou um barco sentada sobre o teu ventre
sou um mastro
 
preciso de ti meu amor estou cansada dói-me
em volta dos olhos tenho vontade de chorar mesmo assim
desejo-te mas antes antes de me tocares de dizeres quero-te
meu amor hás-de deixar-me dormir cem anos
depois de cem anos voltaremos a ser barcos
eu estou só
Portugal nunca mais acaba comemos eucaliptos
eucaliptos intermináveis longos e verdes
comemos eucaliptos entremeados de arbustos
comemos eucaliptos a dor da tua ausência meu amor
comemos este calor e os caminhos de ferro e a angústia
a deflagrar combustão no livro do Lobo Antunes
comemos eucaliptos e Portugal nunca mais acaba Portugal
é enorme eu preciso de ti e em sentido contrário roubam-nos
o tempo roubam-nos o tempo meu amor tempo
o tempo para sermos barcos e atravessar paredes dentro dos quartos
 
meu amor para sermos barcos à noite
à noite a soprar docemente sobre as velas acesas
 
barcos.

Margarida Vale de Gato, in Mulher ao Mar, ed. Mariposa Azual

sábado, 17 de março de 2018

1869 (das palavras) - Foi como se um raio de luz o fizesse ver diferente.


Pedro já tinha pensado naquele assunto vezes sem conta! Por uma vez, tinha até tomado a decisão mas, depois, quando chegou a hora de verdade, hesitou e bastou esta fraqueza para abalar a sua decisão que lhe parecia tão forte.
Mas, naquela vez, o dia claro, o céu azul e sabemos lá, a luminosidade do dia, fez-lhe olhar para o barco que ali estava parado de outra forma. Dessa vez, nem teve tempo para hesitar: Entrou nele!          


João P.
Mar 2018

quarta-feira, 14 de março de 2018

1868 (Das palavras) - António


António saíra decidido de casa naquela manhã invernosa, triste, sombria, com nuvens que tinham a aparência de vir a desabar sobre a baía. Não se importou com isso! Meteu, decidido, os pés ao caminho. Iria ter mesmo aquela conversa com a M… Aquela questão que já se arrastava, não poderia terminar assim. Que diabo! Então tantos meses de trabalho, em conjunto, em torno daquele projeto fantástico não significavam nada? Admitia ter errado aqui ou ali, mas…

João P. 

terça-feira, 13 de março de 2018

1867 - (do amor) Ao meu avô

















Lembro-me de ser miúdo...
Lembro-me de ele me ter pedido para cuidar do seu jardim numa manhã de Primavera...
Lembro-me de ter sachado tudo o que era verde...
Lembro-me dele ter perdido as suas flores de primavera desse ano.
Lembro-me do seu ar desolado
E logo ele que era (aparentemente) um duro

Agora que tu não estás
(e já não estás à muito tempo)
Queria dedicar-te esta túlipa
A primeira do meu jardim.

Agora que não estás,
Cuido eu do teu jardim!
Podes estar certo, meu avô!

João P.
Março 2018
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O Jardim
Cláudia Pascoal


Eu nunca te quis menos do que tudo, sempre, meu amor
Se no céu também és feliz
Leva-me e eu cuido, sempre, ao teu redor

São as flores, o meu lugar
Agora que não estás rego eu o teu jardim
São as flores, o meu lugar
Agora que não estás rego eu o teu jardim

Eu já prometi que um dia mudo ou tento ser maior
Se do céu também és feliz
Leva-me e eu juro, sempre, pelo teu valor

São as flores, o meu lugar
Agora que não estás rego eu o teu jardim
São as flores, o meu lugar
Agora que não estás rego eu o teu jardim

Agora que não estás rego eu o teu jardim
Agora que não estás rego eu o teu jardim
Agora que não estás
Agora que não estás rego eu o teu jardim

sábado, 10 de março de 2018

1866 (Do sentido das coisas) — Naufrágios? Não, nunca tive nenhum.

— Naufrágios? Não, nunca tive nenhum.

— Naufrágios? Não, nunca tive nenhum. Mas tenho a impressão de que todas as minhas viagens naufraguei, a minha salvação escondida em [...] intervalantes [?] ...
— Sonhos vagos, luzes confusas, paisagens perplexas — eis o que me resta na alma de tanto que viajei.
Tenho a impressão de que conheci horas de todas as cores, amores de todos os sabores, ânsias de todos os tamanhos. Desmedi-me pela vida fora, e nunca me bastei nem me sonhei bastando-me.
— Preciso explicar-lhe que viajei realmente. Mas tudo me sabe a constar-me que viajei, mas não vivi. Levei de um lado para o outro, de norte para sul... de leste para oeste o cansaço de ter tido um passado, o tédio de viver o presente, e o desassossego de ter que ter um futuro. Mas tanto me esforço que fico todo no presente matando dentro de mim o passado e o futuro.
— Passeei pelas margens dos rios cujo nome me encontrei ignorando. Às mesas dos cafés de cidades visitadas descobri-me a perceber que tudo, me sabia a sonho, a vago. Cheguei a ter às vezes a dúvida se não continuava sentado à mesa da nossa casa antiga, universal e deslumbrado por sonhos! Não lhe posso afirmar que isso não aconteça, que eu não esteja lá agora ainda, que tudo isto, incluindo esta conversa consigo, não seja falso e suposto. O senhor quem é? Dá-se o facto ainda absurdo de não o poder explicar...

Bernardo Soares
s.d
.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 396.

1865 (do sentido das coisas) - Fragmento 204

Fragmento 204
Nuvens... Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que o não olho mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens... São elas hoje a principal realidade, e preocupam-me como se o velar do céu fosse um dos grandes perigos do meu destino. Nuvens... Passam da barra para o Castelo, de ocidente para oriente, num tumulto disperso e despido, branco às vezes, se vão esfarrapadas na vanguarda de não sei quê; meio-negro outras, se, mais lentas, tardam em ser varridas pelo vento audível; negras de um branco sujo, se, como se quisessem ficar, enegrecem mais da vinda que da sombra o que as ruas abrem de falso espaço entre as linhas fechadoras da casaria.Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também. Nuvens... Que desassossego se sinto, que desconforto se penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre, umas muito grandes, parecendo, porque as casas não deixam ver se são menos grandes que parecem, que vão a tomar todo o céu; outras de tamanho incerto, podendo ser duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no ar alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas, parecendo brinquedos de poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num grande isolamento, frias.
Nuvens... Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem farei de justificável. Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma, fazendo versos em prosa às sensações intransmissíveis com que torno meu o universo incógnito. Estou farto de mim, objectiva e subjectivamente. Estou farto de tudo, e do tudo de tudo. Nuvens... São tudo, desmanchamentos do alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu que não existe; farrapos indescritíveis do tédio que lhes imponho; névoa condensada em ameaças de cor ausente; algodões de rama sujos de um hospital sem paredes. Nuvens... São como eu, uma passagem desfeita entre o céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não trovejando, alegrando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e do descaminho, longe do ruído da terra e sem ter o silêncio do céu. Nuvens... Continuam passando, continuam sempre passando, passarão sempre continuando, num enrolamento descontínuo de meadas baças, num alongamento difuso de falso céu desfeito.

Bernardo Soares

quarta-feira, 7 de março de 2018

1864 (do quotidiano)- História sem palavras


História sem palavras


"Desço a rua, entro no metropolitano, estendo à menina muda as moedas necessárias, aceito o rectangulozinho que ela me fornece em troca, desço a escada, espero, paciente, que se aproxime o olho mágico da carruagem subterrânea. Ela chega, para, parte. Lá dentro, o silêncio do mar encapelado, isto é, o de toda aquela ferragem barulhenta, som de não dizer nada. Na minha paragem saio, subo as escadas do formigueiro ou do túnel de toupeiras por onde andei. E sigo pela rua fora - outra rua -, entro numa loja. De cesto metálico na mão (estamos na era do metal) escolho caixas, latas e latinhas, sacos. Tudo aquilo é bonito, bem arranjado, atraente, higiénico, impessoal. A menina da máquina registadora recebe a nota, dá-me o troco. Ausente, abstracta. Verá sequer as caras que desfilam diante de si? Apetece-me dizer qualquer coisa, que o troco não está certo, por exemplo. Que me deu dinheiro a mais. Ou a menos. Não digo nada. As máquinas sabem o que fazem. As meninas das máquinas também.
Tenho, de repente, saudades do bilhete de não sei quantos tostões que dentro de alguns anos deixará de se pedir em eléctricos e autocarros a um funcionário com cara de poucos amigos, do merceeiro que não nos perguntará mais como estamos nós de saúde, e a família, pois claro. Saudades do tempo das palavras, às vezes insignificativas, de acordo, mas palavras.
Volto a casa com as minhas compras, higiénicas, atraentes e silenciosas. Sinto-me no futuro. Não gosto."
Diário de Lisboa, 22-7-71
Maria Judite de Carvalhoin "Este tempo"

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

1863 (Do espanto de viver) - Um Dia Uma Vida - Ruy Belo



(Homenagem no dia do seu aniversário) 


Não vazes tantas vezes vozes rente ao vento
e não escutes os pássaros nem mesmo o mar
não oiças nem sequer o vento se soprar
ouve o tempo passar escuta a sua voz
pois o tempo tem voz o tempo fala
Está atento abertos os ouvidos ouve
a vida é uma vasta música suave
É esta praia esta dúzia de casas
curiosas do mar que as lambe lá em baixo
a verdadeira capital da noite
Nos limites marítimos do burgo
de casas calmas sobre as pálpebras da morte
dormindo à luz da lua sobre as ondas
que trocam mais abaixo espuma com as rochas
nos extremos atlânticos de aquesta povoação precária
o homem abafado pelo alvo algodão do sono
transforma-se num peixe e devora esse peixe
sem pressentir sequer que a si mesmo se devora
Outras vezes o homem sempre vítima do sono
afaga na almofada um vulto imaginado
e dá-lhe mesmo um nome sem saber
que nomear as coisas é criá-las
Entretanto a sereia sulca o nevoeiro
nas masmorras erguidas na orla do sonho
depois de o náufrago nadar nu nos lençóis do leito
sob a noite cerrada sobre a cru cruel
concórdia do convénio conjugal
E há sonhos e segredos vislumbrados véus
nos que dormem nas casas onde o mar mergulha
vêm flocos de neve à tona da memória
e doses simples ou dobradas meias doses
de uma lua embalada em lenta trajectória
sulcam o céu de telha ou de betão das construções
Inexploradas conchas sobressaltam os caminhos
calcados por aqueles que o mar chama
e favas e feijões inaugurais rompem a terra
sensível à semente que a fecunda
cavada num convívio de indistintos mortos
que em sua noite metafórica articulam só
a imutável voz possível às inscrições pétreas
Mas já o coro das primeiras aves ergue um cântico
na vasta catedral do céu ainda indeciso
quando a alva alveja os sonhos dos vizinhos
embora ainda os embale o naufrágio do sono
A povoação ondula como um lago
levemente mexido pela névoa que inaugura
o espaço disponível para o dia
Ao sol horizontal saem de casa os habitantes
que após o sol não são os mesmos de antes
O tempo passa ouve o tempo passa
faz um breve ruído e passa irrefragável incontido
Já o primeiro sol surge e retira
a sonolenta capa que cobrira cada face
e as gaivotas filhas da manhã
trazem no bico a fímbria da recente luz
E começam as colunas de neblina a irromper
das chaminés de renda das recém-despertas casas
As árvores são verdes é sólido o mar
o tempo passa há raparigas novas
sinto-me em paz as coisas estão no seu lugar
Uma criança chora a terra rola há roupa suja
eu morro bem o sei mas o mundo melhora
Para quê destruir um por um os relógios
se não existe rosto onde não poise pés o tempo
que é feito de passar como de água o mar?
Sabe-me bem sentar sentir-me vivo
sem ter que sujeitar-me à morte mísera do sono
Leio o futuro nas folhas de chá
e vou verificar se o mar ainda lá está
no extremo ocidental do forte onde as gaivotas
procuram povoar ou abolir a solidão
O sol senhor despótico domina
o vasto principado que ilumina
O tempo continua a emitir a sua voz
Pudesse eu eleger por mim a companhia
decerto levaria apenas árvores ao lado
Um deus somente podia afogar
a cabeça no mar da minha vida
Começo a caminhar na madrugada
entre sardinhas e mulheres saltitantes
e ao chegar ao mar penso pregar
o meu sermão de algas e sargaços sobre a esperança humana
sob o canto dos pássaros e a língua dos vizinhos
Neste jardim só cresce a roupa seca pelo sol
as coisas são ou não não são verdade ou não
o povoado cheira a comida e maresia
e através da vida desafia o mundo o nada
Que hei-de fazer se sou a gata borralheira?
- canta a convulsa rapariga oculta nos arbustos
E em vão voga na expectativa de quem nunca vem
mordiscar-lhe a papoila mole dos lábios
com a sofreguidão da truta ao absorver o anzol
Um forasteiro só certa vez a beijou ao vê-la distraída
mas por mais que esperasse nunca mais voltou
a dar-lhe um beijo só em toda a vida
E o hálito leve de insolentes raparigas
embacia os espelhos da manhã
E quando até mim chegas deus chegou
mulher inesperada meio mulher e meio madrugada
recortada no céu de um homem que desesperou
tantas vezes voltou de mãos cheias de nada
Eu quero para mim parcelas de manhã
delas farei um tempo para mim
um tempo de porvir que se detenha
tempo que se renegue e seja tempo
e que ao negar-se afirme a sua condição
As coisas em redor prodigalizam cor
coisas que se concentram que têm sabor
E vejo como orvalho o teu olhar tombar
primeiro quase sólido e depois vapor
evaporar-se e dissipar-se como halo ou hálito
Teu corpo acolhedor calma baía
recorta-se na luz agora a esta hora
e alegra mesmo até a alegria
Pressinto que vieste e finalmente veio alguém
que verdadeiramente vem sem bem se saber quem
Pões os pés na manhã e tudo são caminhos
a orla do vestido roça no rocio depois do
baile breve na praia iluminada pela lua
muito mais tua do que do planeta
onde vivemos pois à tua volta
é que descreve a lua a sua órbita perfeita
A noiva tem no seu vestido branco óptima mortalha
e tem escovas de dentes iminente vida conjugal
dias de sol inúteis como logo este jornal
por trás do rosto imóvel que prospecta ao espelho
uma última vez antes de ir à casa sobrepor a igreja
O tempo não parou ó noiva é esse o mal
se hoje és imortal oxalá amanhã
leve a terra te seja
em sonhos sempre alguma borboleta sobre ti
desceu e escureceu a própria escuridão
sobre essa silhueta de senhora do olhar
sozinha em vida e pelo ar apenas rodeada
cercada só de terra e na morte isolada
Saíste com a aurora vertical recebeste o meio-dia
escondeste-te na luz perdeste-te na estrada
e não deixaste nada além da tua ausência
As vozes são às vezes vítimas do vento
à criança que foi substitui-se o adulto
cada rosto destrói as sucessivas formas desse rosto
um rosto é um momento
Um homem pisa pedra a pedra uma calçada
e ao pisar a primeira está a última pisada
A gente vai pela rua vai e vem
mas pela vida vai-se e nunca vem ninguém
O som do órgão ultrapassa os azulejos
a mole da igreja e inaugura a primavera
Não oiço a voz do mar oiço o tempo passar
É primavera mesmo sobre a minha idade
sobre os anos que põem pés pesados no meu peito
(eu agora nem mesmo me revejo já
nessas fotografias nessas outras tantas mortes)
A música solar murmura em meus ouvidos
o mar dorme um profundo sono azul
um grupo palrador de pombas arredonda o adro
e ao ver uma gaivota cospe um pescador
para na pesca o não abandonar a sorte
Grandes nuvens me nevam na cabeça
o dia alastra como um canto líquido
e com um mata-moscas procuro matar
o sol em cada raio que devassa os vidros da janela
A luz valsa e verseja em cada pedra
rebenta em ondas na margem do dia
parado como um mar a ventos não sujeito
A terra é musical no meu país
cantava tanto a brisa nas espigas
nas débeis raparigas nas umbrosas oliveiras
quando ao princípio éramos os campos e eu
E nem essa magnífica mulher
de um olhar que apenas por brilhar já transfigura o ar
que nas mãos manipula embrulhos e palavras
consegue afugentar a primavera
que entre dois ladrilhos do comprido corredor
culmina e se concentra numa flor naquela casa
(qual será o futuro dessa flor
que os campos renegou e mal nasceu domesticou
a explosão natural do reino vegetal?)
Boceja a tarde soalheira e sossegada nos
plátanos calmos como o espaço dos domingos
e o mar encosta preguiçoso a fronte
no regaço que a terra intimamente tem
na cúpula do corpo da nutrida primavera
nos confins da aldeia cheia de um odor de amor e mar
Vejo a fazenda a vida ameaçadas por
espumas e brisas de uma cor de esmeralda
e o louvor dos pássaros crepita
no fogo fluvial do mês de agosto
Ó natureza nua mãe do mundo
eu sacrifico apenas ao deus bach esse deus que
numa abóbada de música domina
A solidão rumina neste cabo
onde a névoa se adensa e principia a evocar
a geada caída no primeiro jardim
do homem donde ergueu o voo
a gaivota que agora um arenque devora
E entretanto a tarde não tem mãos a medir
e enquanto não cair os homens e os campos
sujeitam-lhe uns a vida outros a superfície
aceitam-na como uma solução
O sol que nasce põe-se nos teus olhos
e mal os fechas logo a noite desce sobre
um rosto que resume rápidas mulheres
Quando passas eu passo a conhecer de cor inúmeros países
há morangos vermelhos nos teus seios
e arremessam-te olhos curiosas árvores e ávidas janelas
que te deixam na rua puramente nua
enquanto o som do sino soa no teu peito
e o sol se dissolve em teu vestido
Pensam martirizar as tuas ancas
amaldiçoar maldizer o teu nome
e assassinar-te com olhares elaborados
no silencioso e chão laboratório
onde calculam complicadas cúmplices maquinações
tenebrosos embaixadores do país das trevas
O sol suave como um pensamento
despenha-se nas águas entre nuvens
e à minha volta fecha-se esse férreo
abraço conjugal que a sociedade
usa para devassar a intimidade
Mas se eu escancarar de par em par
as portentosas portas de acesso à minha vida
hão-de inundá-la ao mesmo tempo sol e mar
únicos portos para os meus navios
Afoga-se o crepúsculo na noite
como nele se afogara já o dia
e eu velo não venha a morte ver
se pálpebras pesadas me não velam
o olhar minha única defesa
Há magos que de flores fazem raparigas
que devagar se enfeitam para a festa
do fero e feroz fim da luz diária
Os mortos surgem nos seus fatos domingueiros
lágrimas luzem lá onde ontem uns olhos olharam
As ruas são de noite como que canais
por onde só circula a sonolenta escuridão
Saio de casa ou sóbrio como um domingo
ou exuberante e excessivo como um sábado
Vindo da agricultura e da cultura por
folhas de terra e páginas de livros
ordenho umas palavras leves e leitosas
e com elas procuro apreender deter o tempo
obrigá-lo a parar e impedi-lo de passar
Mas oiço-o falar é sua esta voz
Cobre-me o corpo a escuridão e cai sobre ele a chuva
e as nuvens indecisas contra as quais se apoiam
os arcos e abóbadas da noite
solidamente assente em dunas ou colunas
da mais universal obscuridade
comunicam-me a mágoa deste tempo português
e chego a pôr em causa a minha nacionalidade
Há uma luz lunar que ilumina o mar
o asparge pela areia pela maré cheia
o poema de espuma que lhe cabe recitar
e me fala das cinzas a que se reduz
o céu breve e restrito de uma noite
abençoada noite de mulheres
que quando dormem mais estão despertas
e são reais louças e temporãs
Faço uma coisa ou outra e depois disso
é ao túmulo só o sítio aonde tenho de ir
Preciso de dormir e só na pedra tumular
eu poderei poisar de verdade a cabeça
Ingresso para sempre no mais puro escuro
Fui um inveterado tripulante da memória
oiço os passos do tempo sei a minha idade
e deito-me com toda a dignidade
É inútil bater amigos inimigos a esta loisa
onde eu repouso como simples coisa
E o tempo poisa deixa finalmente de passar

Ruy Belo

1902 (da resiliência) - Do que um homem é capaz

Do que um homem é capaz? As coisas que ele faz Pra chegar aonde quer É capaz de dar a vida Pra levar de vencida Uma razão de viver A vida é ...