quinta-feira, 15 de abril de 2010

O miúdo que pregava pregos numa tábua



Lê-se num só folego. Aliás, nem se consegue parar de ler. São 111 páginas de letra grande da mais pura poesia escrita em prosa.
Palavra de honra, há muito tempo que um livro não me encantava tanto. Tenho até dificuldade em começar um novo após a leitura deste poema quase autobiográfico

Aconselho vivamente...

Que melhor forma para se introduzir a leitura deste poema que as palavras do próprio autor ao Expresso?

Belo, belo, belo! quem me dera ter sido eu a escrevê-lo...

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Junto a uma janela quase primaveril, na sua casa de Lisboa, Manuel Alegre falou sobre O Miúdo que Pregava Pregos numa Tábua (Dom Quixote), a sua obra mais recente. «É uma entrevista literária, não política», avisou logo. Mas a dinâmica da conversa, caótica como a memória, haveria de nos levar até ao limiar das Presidenciais.

Em 1996, quando lançou o romance Alma, disse que «há livros que se fazem porque se quer» e «há outros que se escrevem porque não pode deixar de ser». A qual das categorias pertence este livro?
À mesma categoria do Alma, à dos que se escrevem porque não pode deixar de ser. Diria que foi um livro que se impôs. No fundo, é uma arte poética, uma explicação de como se chega à escrita e à poesia, através dos sons, dos episódios vividos, das coisas que nos marcaram.

Auto-consciente, o livro mostra-nos as suas costuras, os seus avanços e recuos, os vários caminhos, as indecisões.
O livro escreve-se para a frente e para trás, aos ziguezagues, porque a memória também funciona assim. A memória é feita de fragmentos. Fragmentos dispersos, que muitas vezes se sobrepõem e que não têm continuidade. Como a vida. Isto é uma coisa que brotou não sei de onde. É um sopro que veio lá de dentro. Ultimamente, aliás, só escrevo assim.

Quais foram os momentos fundadores da sua escrita?
Os sons da infância: sinos que tocam, um violino desafinado, o rumor das oficinas, o canto dos pássaros, as águas que passam. E certos episódios marcantes que se transformaram em metáforas, as minhas metáforas, a que volto muitas vezes. O que este livro foi buscar, o que o condiciona, o que lhe dá coerência, são esses vários sons e ritmos da vida, dirigidos para a escrita, para o poema, para as sílabas contadas pelos dedos.

O jogo literário, porém, não revela tudo. «Estou aqui a esconder-me e a mostrar-me», diz no último parágrafo.
Claro. Há sempre uma transfiguração. E é através desse fingimento, desse processo ficcional, que se consegue ir ao fundo das coisas.

O narrador está sempre a desdobrar-se. Vai sendo sucessivos miúdos, por vezes sobrepostos, em vários tempos e idades.
Nós somos sempre o resultado de muitos desdobramentos. Tenho a sensação de ter muitas vidas na minha vida e acho que isto acontece com toda a gente. Aquele miúdo de dez anos que eu descrevo a olhar-se ao espelho e a imaginar-se com outros dez anos em cima, sou eu, hoje, com setenta e tal. Quer dizer, sou e não sou.

Em sentido inverso: ainda vê o miúdo de dez anos, quando se olha ao espelho?
Sim, vejo. Vejo o miúdo que ainda é miúdo e já não é.

Um miúdo que nunca deixou de procurar o ritmo do mundo, a respiração da terra.
Eu acho que a arte, tanto a literária como a musical, tem tudo a ver com isso. Com a respiração da terra, do nosso corpo, até do cosmos, se quiser. Acho que há um ritmo global que é feito de muitos ritmos.

E cabe ao poeta entrar em sintonia com esses ritmos?
Sim. Se não acertar essa respiração é porque falhou. Falhou a palavra, falhou o verso, falhou o poema, falhou o livro.

Numa obra em fragmentos, como é que se faz para manter a coesão interna?
O Miúdo que Pregava Pregos numa Tábua foi quase todo escrito de um jacto, como já acontecera com o Cão como Nós. Depois, há coisas que corto ou monto, como no cinema. A ordem dos fragmentos não foi necessariamente aquela. Há uma certa montagem.

Um dos momentos mais intensos do livro é a evocação da última visita a Sophia de Mello Breyner Andresen. Muito doente, ela pediu-lhe que dissesse poemas de Camões, repetindo-os consigo «até que, a certa altura, já não dizia as palavras, só a batida das sílabas, (…) só a respiração do poema na sua própria respiração».
Aconteceu exactamente assim. Era poesia em estado puro. Talvez o poema supremo seja isso. Seja essa respiração, já sem palavras.

Noutro texto, Miguel Torga é retratado «a segurar o caderno e a empunhar a caneta até ao fim».
São diferentes. O Torga era um poeta muito mais racionalista. Trabalhava e depurava muito. A escrita, para ele, era uma batalha. O caderno e a caneta, as suas armas.

Acaba por fazer várias aproximações à morte: Sophia, Torga, os seus pais. E conta em detalhe o momento em que também podia ter morrido.
É verdade. Uma pessoa da minha família reparou nisso. Não foi algo que tenha programado, mas também não aconteceu certamente por acaso.

No fragmento em que narra essa crise cardíaca que quase o vitimou, o regresso à vida é simbolizado pela recuperação do «ritmo da terra a tremer».
Esse texto é um exorcismo e uma celebração. É uma celebração da própria sobrevivência.

A mim, parece-me que a principal figura que emerge deste livro é o seu pai. O pai que ensina a não ter medo do mar. O pai que lhe abre os caminhos da vida.
Aí há também um acto de compensação. A minha mãe era uma pessoa com uma grande energia e teve sempre uma presença mais visível, mesmo diante dos meus amigos: o Assis Pacheco, o Herberto Helder, o Zeca Afonso, os que andavam lá por casa. O meu pai tinha uma atitude mais contemplativa, mais distante. Agora, reconheço que algumas das coisas essenciais da minha vida vêm dele.

Considera-se hoje mais parecido com o seu pai do que se considerava há cinquenta ou há trinta anos?
(Pausa longa) Estou mais perto dele. Sinto-me mais perto. E mais parecido, sim. Mais parecido.


Recentemente, voltou ao lugar onde combateu em Nambuangongo (Angola), um episódio que também é evocado no livro. Como foi esse regresso?
Nunca se volta exactamente ao ponto de partida. O quartel estava destruído, já não havia inimigo, restavam ali apenas algumas campas. Mas também havia coisas novas: uma escola, um hospital em construção. Foi uma visita que me despertou emoções muito intensas. E lágrimas, pelos que estavam, pelos que não estavam e até por mim mesmo. Aquilo marcou toda uma geração. Há guerras que não acabam nunca, como disse o René Char. Eu fui ali como que em peregrinação, a tentar o exorcismo. Mas não sei se alguma vez me vou libertar dos momentos em que se tinha medo na picada, medo das minas que estavam à nossa espera para rebentar, a sensação de estar cercado, que invade os nossos sonhos, os nossos pesadelos.

E a imagem terrível da bala que assobia.
Esse foi o primeiro tiro que eu ouvi numa emboscada. E é muito diferente de todos os outros tiros que ouvi ou disparei. Porque é um tiro que se percebia que era de guerra, um tiro que trazia morte. Recordo que quando isso me aconteceu fiquei paralisado no meio da picada e foi um soldado, por acaso africano, que de cima de um Unimog se atirou sobre mim e me salvou. Eu já tinha ouvido muitos tiros. Mas aquele soou de outra maneira. A bala que assobia é a morte propriamente dita. E a memória dessa bala não passa, não passa.

Preferia que o seu nome ficasse inscrito na literatura portuguesa ou na História do país?
Na história da poesia. Independentemente do que vier a acontecer, se daqui a cem ou 50 anos se falar de mim, será por alguns versos que ainda circulem por aí.

Já conseguiu superar a sua dualidade essencial: o Manuel Alegre escritor versus o Manuel Alegre político?
Eu sempre vivi dividido. Essa divisão no fundo é a minha unidade, é o meu todo, porque é fruto das circunstâncias em que nasci. Tenho amigos que fizeram a opção exclusiva da poesia, são uma espécie de monges ou anjos da poesia. Eu não. Eu fui apanhado pela engrenagem da política e sobretudo pela guerra, que mudou completamente a vida da minha geração. E depois, talvez por uma questão de temperamento, nunca fui capaz de viver fechado numa torre de marfim.

Não consegue estar à margem da intervenção pública e cívica.
Isso não. Isso é-me difícil. Preciso um bocado desse incómodo. De me incomodarem e de me incomodar. Mas para mim o essencial sempre foi a poesia. Gostava de intervir, de mudar as coisas, em dois ou três momentos tive a sensação de estar a dar uma volta na História, mas carreira política não a tinha. Nunca quis ser secretário-geral do PS, nem primeiro-ministro. Só depois da candidatura à Presidência da República é que isto se complicou. Complicou-se porque trouxe consigo um processo, uma rede, uma dinâmica não apenas política, mas afectiva, de que é difícil uma pessoa soltar-se. Passei a ter uma responsabilidade cívica muito maior. E aquilo que mais me aflige é o facto desse cargo ser uma função totalmente absorvente. Não sei até que ponto, se vier a ser eleito, terei margem para a escrita.

O Mitterrand, por exemplo, escrevia.
O Mitterrand escrevia e tinha as suas horas para a leitura, para o convívio, para ir às livrarias, para passear nas ruas. Isto sendo um presidente executivo, que governava. E o próprio Mário Soares também lia e escrevia muito.

Ainda assim, a possibilidade de ser eleito assusta-o mais do que o atrai?
Assusta-me um bocado. Quer dizer, preocupa-me. Não me assusta, preocupa-me.

[Entrevista publicada no suplemento Actual nº 1952 de 27 de Março, do semanário Expresso]

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