sábado, 21 de novembro de 2009
O ano da morte de Ricardo Reis
Devo a leitura de José Saramago à Jacky . Conversando, há uns anos atrás sobre leituras, ela falou-me do "ensaio sobre a cegueira". Comecei por esse e fiquei logo fã (embora o tema da obra seja duro...)
Já li muitas obras dele, mas o livro sobre o qual hoje quero falar é de "O ano da morte de Ricardo Reis" do qual me faltam poucas páginas para acabar a leitura.
Não é um dos livros de José Saramago cujo enredo seja o que mais nos faça sorrir ou com que empatizemos mais, no entanto, parece-me ser um dos livros em que José Saramago tenha mais investigado para o escrever ( para além do memorial do Convento, claro)
A História anda à volta do regresso de Ricardo Reis (um dos heterónimos de Fernando Pessoa) do Brasil para assistir ao funeral de Fernando Pessoa. Depois descreve-se uma possível vida do médico Ricardo Reis em Lisboa nos duros anos 30 em Portugal.
Uma vez ou outra são-nos apresentados diálogos imaginários entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa e somos introduzidos a um ou outro poema de Ricardo Reis.
Porque recomendo a leitura da obra (e porque ela me fascinou?)
1 - Pelo realismo e plausibilidade do retrato que Saramago faz da vida de Ricardo Reis em Lisboa. A sua vida pelo Chiado e pelo Miradouro de Santa Catarina faz-nos imaginar que Ricardo Reis ainda lá viva hoje e abra agorinha mesmo a janela da sua casa...
Cito
" Ricardo Reis aproximou-se duma janela, através da vidraça sem cortina viu as palmeiras do largo, o Adamastor, os velhos sentados no banco, e o rio sujo de barro lá adiante, os barcos de guerra com a proa virada para terra, por eles não se sabe se a maré está a encher ou a vazar, demorando aqui um pouco logo veremos,[...] Ricardo Reis percorreu de novo toda a casa, não pensava, olhava apenas, depois foi à janela, a proa dos barcos estava virada para cima, para montante, sinal de que a maré descia. Os velhos continuavam sentados no mesmo banco."
(José Saramago: O ano da Morte de Ricardo Reis)
Até nos dá vontade de conversar com ele ...
Então meu caro Ricardo Reis... Com que então fugiste do Hotel Bragança? Arranjaste-a bonita! algo andaste a tramar... Sim, vejo-te à janela da tua nova casa e imagino-te... não tens fuga. Razão tinha o Pimenta... Chamado à PVDE, boa rez não podes ser...
Eu vejo-te daqui, aceno-te. Será que me estás a ver?
2 - Pela investigação séria que José Saramago fez da obra de Fernando Pessoa. As características do personagem construído condizem com os traços psicológicos que Pessoa construiu para Ricardo Reis
RICARDO REIS – O POETA DA RAZÃO
Heterónimo de Fernando Pessoa
A partir da carta a Adolfo Casais Monteiro
nasceu no Porto (1887);
foi educado num colégio de jesuítas ;
”É latinista por educação alheia e semi-helenista por educação própria”;
médico;
viveu no Brasil, expatriou-se voluntariamente por ser monárquico;
Interesse pela cultura Clássica, Romana (latina) e Grega (helénica);
Fisicamente:
”Um pouco mais baixo, mas forte, mais seco” do que Caeiro;
” de um vago moreno”; cara rapada;
Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa, é o poeta clássico, da serenidade epicurista, que aceita, com calma lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas. “Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio”, “Prefiro rosas, meu amor, à pátria” ou “Segue o teu destino” são poemas que nos mostram que este discípulo de Caeiro aceita a antiga crença nos deuses, enquanto disciplinadora das nossas emoções e sentimentos, mas defende, sobretudo, a busca de uma felicidade relativa alcançada pela indiferença à perturbação.
A filosofia de Ricardo Reis é a de um epicurismo triste, pois defende o prazer do momento, o “carpe diem”, como caminho da felicidade, mas sem ceder aos impulsos dos instintos. Apesar deste prazer que procura e da felicidade que deseja alcançar, considera que nunca se consegue a verdadeira calma e tranquilidade – ataraxia.
Ricardo Reis propõe, pois, uma filosofia moral de acordo com os princípios do epicurismo e uma filosofia estóica:
- “Carpe diem” (aproveitai o dia), ou seja, aproveitai a vida em cada dia, como caminho da felicidade;
- Buscar a felicidade com tranquilidade (ataraxia);
- Não ceder aos impulsos dos instintos (estoicismo);
- Procurar a calma, ou pelo menos, a sua ilusão;
- Seguir o ideal ético da apatia que permite a ausência da paixão e a liberdade (sobre esta apenas pesa o Fado).
Ricardo Reis, que adquiriu a lição do paganismo espontâneo de Caeiro, cultiva um neoclassicismo neopagão (crê nos deuses e nas presenças quase divinas que habitam todas as coisas), recorrendo à mitologia greco-latina, e considera a brevidade, a fugacidade e a transitoriedade da vida, pois sabe que o tempo passa e tudo é efémero. Daí fazer a apologia da indiferença solene diante o poder dos teus e do destino inelutável. Considera que a verdadeira sabedoria de vida é viver de forma equilibrada e serena, “sem desassossegos grandes”.
A precisão verbal e o recurso à mitologia, associados aos princípios da moral e da estética epicuristas e estóicas ou à tranquila resignação ao destino, são marcas do classicismo erudito de Reis. Poeta clássico da serenidade, Ricardo Reis privilegia a ode, o epigrama e a elegia. A frase concisa e a sintaxe clássica latina, frequentemente com a inversão da ordem lógica (hipérbatos), favorecem o ritmo das suas ideias lúcidas e disciplinadas.
A filosofia de Reis rege-se pelo ideal “Carpe Diem” – a sabedoria consiste em saber-se aproveitar o presente, porque se sabe que a vida é breve. Há que nos contentarmos com o que o destino nos trouxe. Há que viver com moderação, sem nos apegarmos às coisas, e por isso as paixões devem ser comedidas, para que a hora da morte não seja demasiado dolorosa.
- A concepção dos deuses como um ideal humano
- As referências aos deuses da Antiguidade (neo-paganismo) greco-latina são uma forma de referir a primazia do corpo, das formas, da natureza, dos aspectos exteriores, da realidade, sem cuidar da subjectividade ou da interioridade - ensinamentos de Caeiro, o mestre de todos os heterónimos
- A recusa de envolvimento nas coisas do mundo e dos homens
3 - Pela descrição da Lisboa e de Portugal dos anos 30. Mais uma vez o relato é sério, rigoroso e cuidado
4 - Quem escreve?
não sou eu, foi um impostor... alguém que dita...)
Tenho Mais Almas que Uma
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.
Ricardo Reis, in "Odes"
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João,
ResponderEliminaro 1º livro que li do Saramago foi O Memorial do Convento, estavamos no Verão de 1983. Uff!!! Como o tempo passa rápido. Depois desta leitura, outros títulos do Saramago se seguiram... confesso que não tenho lido os últimos títulos.Mas há um que guardo na memória e no coração... O Ano da Morte de Ricardo Reis!! è dos meus favoritos.
Há uma frase que recordo com frequência:
" (...) antes de narcermos ainda não nos podem ver mas todos os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco..."
Obrigada por partilhares esta leitura.
bj Jú